Ter ou não ter: eis a questão!

É comum ouvir em diversos ambientes que todo mundo tem seu preço ou que ser corrupto é algo que faz parte de nossa natureza. Outros, como o filósofo que cito abaixo, no entanto, discordariam desse ponto de vista, jogariam a culpa na cultura. Qual é a verdade?

“O homem nasce bom e a sociedade o corrompe”
(Jean-Jacques Rousseau)

Há quem defenda que o homem nasça neutro, mas para esse texto e efeitos práticos, isso não importa muito. O meu objetivo aqui é mostrar como algumas crenças nos definem catastroficamente e algumas delas estão tão arraigadas em tradições muito antigas, que muitas vezes podemos ignorar sua origem.

A principal crença que quero discutir é como a incompatibilidade entre riqueza e felicidade pode ser uma delas e nem nos damos conta que podermos ter esse conflito interno.

Antes de falar dessa crença específica sobre a riqueza, quero utilizar um exemplo tradicional que ocorre na maioria das famílias brasileiras, no intuito de demonstrar o mecanismo da ação das crenças. Refiro-me àqueles conselhos sobre relacionamentos e dicas sobre o que fazer e o que não fazer para se casar – se é que é temos a obrigação de nos casar.

Um dia me disseram que se eu continuasse indo a baladas, sambas e forrós eu nunca iria encontrar uma pessoa bacana como eu merecia, afinal todo mundo que frequenta esses tipos de lugar não querem nada com nada. Mas me parece que todo mundo é muita gente, né?

Estão aí amores vivos há anos provando as inconsistências de algumas crenças da sociedade! Mas então de onde vêm essas crenças que são repassadas?

Ser saudável ou ter saúde?

A maioria dos desacordos humanos se dá por pontos de vista diferentes. Há até nome para esses desacordos: chama-se Efeito Rashomon. Há uma guerra dicotômica que recai incessantemente por diversos temas do nosso dia a dia e um deles é sobre a posse material. É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus1, certo?

Médicos que têm contato com pacientes terminais dizem, que as pessoas que estão no seu leito de morte não pedem socorro para viverem um pouco mais na intenção de humilhar mais alguém. Elas não pedem para viver um pouco mais para comprar outro carro ou outro objeto qualquer.

As pessoas que estão no leito de morte geralmente gostariam de viver um pouco mais para poder dar um abraço no irmão que há tempos não conversavam. Para poder brincar um pouco mais com o filho, pois achava que não possuíam tempo a perder. Para poder fazer as coisas simples que ficaram para trás.

Nesse momento, percebemos que o tempo é infinitamente mais importante que do que qualquer relógio. O relógio de R$ 3.000,00 marca as mesmas horas que o relógio de R$ 50,00.

Ao refletir sobre essa história, ainda mais se tivermos aquela história do camelo bem fixa em nossa mente, podemos chegar à fatídica conclusão de que não é vantajoso ser rico. Mas perceba quão precipitada é essa conclusão.

O mesmo Efeito Rashomon que polariza a discussão política em muitos lugares é o responsável por tornar uma discussão que é cheia de saídas e possibilidades em uma questão simplista em preto branco.

Esse raciocínio acaba gerando apenas duas vias de soluções radicais: ou sou rico e infeliz, ou sou pobre e feliz, pois somente é feliz quem entra no reino dos céus!

Mas será que isso é verdade? Quando fazemos isso, estamos diante de um falso problema, afinal existem várias possibilidades. Formalmente dentro do estudo da lógica, esse falso dilema ou falsa dicotomia é considerado uma falácia.

Reflitamos um pouco juntos. Ter saúde significa que estamos com a sua saúde em dia, todos exames com boas referências e sem nenhuma patologia instalada. Porém, ser saudável significa que tomamos atitudes saudáveis em nossa rotina. O que é bem diferente.

Será que seria impossível existir alguém com hábitos saudáveis, mas que carrega uma doença que infelizmente prejudica sua saúde? Será impossível uma pessoa que apresenta todos os níveis e referências de saúde normais e, ainda assim, mantenha hábitos que não são considerados saudáveis?

Perceba que não há relação direta entre ter saúde e ser saudável, mas podemos traçar uma relação indireta e probabilística, onde ser saudável significa um aumento de chances de se ter saúde. Portanto, sejamos responsáveis pelas nossas decisões e tomemos nossos riscos. Não há garantias.

Quem é você?

Quem sou eu para te dizer o que você deve ou não deve fazer? Não posso dizer os lugares que você deve frequentar, as riquezas que você deve ou não acumular. O que posso fazer é te provocar para perceber que há uma enorme diferença entre ter e ser.

Grande parte das pessoas gastam a vida inteira para ter o carro dos sonhos, para ter aquele emprego, aquela casa, comprar isso ou aquilo e não se preocupam em ser bons profissionais, em ser amigo, marido ou esposa, em ser saudável.

Bons profissionais, amigos e companheiros normalmente conseguem angariar boas posições financeiras, embora possam ser tachados negativamente por quem só consiga enxergar a questão pelo viés daquela falsa dicotomia.

Eis aqui exatamente onde a questão cultural que diferencia e influencia uma grande parte das pessoas nos molda e me parece que ditados religiosos são os menos prejudiciais nessa hora. No conflito interno e desconhecido do dia a dia, que pode nos levar a quadros de ansiedade, muitas pessoas confundem o ter e o ser com o parecer no intuito de para tamponar a angústia.

Para exemplificar e ilustrar bem o ponto chave da nossa reflexão, basta lembrar que há muitas pessoas que insistem em exibir seus tanquinhos no Instagram, mas que muitas vezes são produzidos por uma fonte doentia – o caso dos anabolizantes. Assim, parecendo que são, podem se vangloriar do que têm.

Às vezes os exames dessa pessoa podem até mesmo estar em dia! Colesterol top! Triglicerídeos okay… Uhmm… A gente conversa daqui uns anos! Muito diferente daquela pessoa que conquistou o mesmo objetivo pela disciplina e saúde.

Ao internalizar esses conceitos, podemos analisá-los em vários aspectos da vida. Quantas pessoas ostentam bens e ativos caros com a hashtag #carpediem sustentados mediante pagamentos de juros exorbitantes distorcendo todo o sentido do carpe diem?

Quantas pessoas ostentam um casamento falido em suas redes sociais, onde em sua timeline é exibida lindas fotos, mas que não há nenhum tipo de diálogo quando há algum desalinhamento do relacionamento? O tampão da angústia às vezes é a traição.

Quantas pessoas querem ser o que outras pessoas sonharam? Quantas pessoas ostentam amizades de interesses e por aí vai? Quando a estética constrói a ética de uma cultura, as vaidades ficam flor da pele!

“O importante é ter sem que o ter te tenha”
(Millôr Fernandes)


1 Independentemente da religião que você possa seguir, ou ainda se você for ateísta, perceba que ditados ou passagens bíblicas como essa moldam o inconsciente coletivo. É interessante perceber que a nossa cultura é diretamente influenciada pela cultura judaico-cristã e muitas vezes é difícil fugir de algumas crenças que tem origem nessa história ocidental.

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