malicia

Malícia não é Maldade

Pedro tinha 14 anos quando se apaixonou por Mariana. Ela era linda. Já moça e seus olhos puxados, quadril largo e cintura fina. Um rosto que foi desenhado por anjos. Ela entrou na sala de aula. Ele já estava sentado em seu primeiro dia na turma e, como sempre, um pouco distraído… cabeça nas nuvens. Não conhecia ninguém e apenas observava os outros meninos brincarem. Algumas duplas de meninas cochichavam olhando para ele. Ele não quis mais olhá-las. Faltou coragem. Mariana se sentou à sua frente e logo seu coração bateu diferente. Foi amor a primeiro tudo.

O tempo se passou durante aquele ano e ele se tornou um grande amigo de Mariana. Sua falta de malícia não revelou algo que ele deveria ter percebido, mas não. Havia algo que a tinha deixado mais leve depois de algum tempo, mais feliz… O desinformado Pedro havia achado o máximo suas sutis mudanças e ainda jurava que só ele havia percebido, pois só quem ama de verdade pode notar tais coisas. Até que um dia, como um cruzado no queixo, ela conta a história de João Flávio – Cruzado? Nada! Um tiro no coração. O velhaco era nada mais nada menos que seu namoradinho do interior.

Como ele não sabia desse pulha antes? Eram melhores amigos, ora bolas! Ela já devia ter falado. Ela não poderia fazer isso! Mariana era o amor de sua vida. Seriam eternamente um casal perfeito. Quem diabos é esse calhorda?

Raiva, muita raiva

Pedro nunca havia conseguido declarar seu amor. Até que fatalmente o pior aconteceu. O dia que fez com que aquele pobre e ingênuo garoto nunca mais se esquecesse do que, agora, significaria a palavra humilhação. Mariana num lindo gesto de afeto ao agradecer um favor de classe deu um beijo no rosto de Pedro. Que delícia foi aquilo! Mas do céu ao inferno em uma fração de segundos em um lampejo de pensamento. A jovem confessou em sequência sua ansiedade por esperar o fim de semana com o seu João Flávio. Como se não bastasse as 7 toneladas no peito, toda turma ao ver o beijo começou a gritar o famoso: Tá na-mo-ran-dô! Tá na-mo-ran-dô!

falta malícia nos inocentes

Desilusões no trabalho, na família ou na gestão financeira

Uma desilusão amorosa talvez não tão trágica como a de Pedro, mas ainda maior, não é nada incomum. Muitas vezes por falta de malícia não percebemos que poderíamos ter evitado algumas situações indesejadas e desagradáveis em diversos campos de nossas vidas. Aquele negócio mal feito, aquela conversa mal esclarecida… Claro, bola pra frente! Porém, ao não delimitar as reais diferenças de malícia com maldade, pela ânsia de sermos bons ou quem sabe santos, por querermos sempre confiar nas pessoas ao nosso redor, comentemos um dos piores pecados: não conhecer nossa própria sombra.

Na psicologia freudiana, aprimorada (ou contraposta) por Carl Gustav Jung1, o conceito de sombra é fundamental para o entendimento da psique humana e para a ideia que desejo expressar aqui. Para ser breve e não entrar em tecnicismos, podemos assumir que sombra é a parte de nossa personalidade, de nosso ego, que carrega as maiores frustrações, medos, egoísmos e práticas negativas mais comuns.

Todos nós temos uma sombra. Todos nós passamos por momentos frustrantes e experiências traumáticas em maior e menor grau. Nas palavras do próprio Jung:

“Infelizmente, não há dúvida de que o homem não é, em geral, tão bom quanto imagina ou gostaria de ser. Todo mundo tem uma sombra, e quanto mais escondida ela está da vida consciente do indivíduo, mais escura e densa ela se tornará. De qualquer forma, é um dos nossos piores obstáculos, já que frustra as nossas ações bem intencionadas.”

(Carl Jung)

Padrões vão se formando e se repetindo até que nossa comunicação interna nos trai. Tentar reprimir e calar a nossa sombra nos leva a fantasiarmos uma vida enquanto nosso inconsciente a domina. Encarar nossa própria sombra pode ser um dos maiores ensinamentos e exercícios de autoconhecimento que podemos experenciar, além de evitar por muito que caiamos em armadilhas cavadas por nossa própria inocência. Sem isso pode ser muito difícil, para não dizer impossível, até mesmo nos perdoar por um dia ter tido tal ignorância.

Expandindo a visão de mundo

A língua inglesa possui uma palavra que não existe tão bem definida no português: archness. A palavra que vem da derivação de arco, arquear, passando bem a ideia de flexibilidade, exprime o lado positivo da malícia (sua tradução) e astúcia, enquanto malice ou maliciousness exprime mais o lado maldoso da coisa – aquele que você quer evitar ao encarar a própria sombra.

A sombra é como se fosse nossa sujeira complexa formada pelo contato com a sombra coletiva, que também existe. Seitas, grupos de pessoas e até mesmo religiões possuem arquetipicamente sua sombra e ela deve ser limpa de tempos em tempos. Retirando a malícia como subproduto e fazendo com que a maldade seja o objeto da recusa através do livre-arbítrio. Se você não o conhece, como pode negá-lo?

Há uma sutileza no contorno das palavras. Desilusões nos relacionamentos e frustrações podem criar uma falsa ideia de predestinação motivada por uma raiva sombria, criando a ideia de que somos bons o suficiente para o mundo. O ressentimento transparece em julgamentos tirânicos. Perceber esse mecanismo pode ser complexo, requer estudo e dá trabalho. No entanto, é elementar. Seminal.

Expandir o vocabulário, como mostrado, pode ajudar a aprimorar sua visão de mundo. E te convido para estudar comigo. Quantas outras posturas poderíamos ter diante de palavras que poderiam existir, mas não chegaram a nascer nessa ou em outra língua? Essa capacidade de expansão somente pode ser enxergada com um profundo autoconhecimento. É possível reconstruir uma história de ressignificação das palavras.

Você já passou por alguma situação embaraçosa por falta de malícia? Diga aí nos comentários e faça o seguinte:


Referências Bibliográficas

1JUNG, C. G. Sobre sentimentos e a sombra: Sessões de perguntas de Winterhur. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014

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4 Comments
  1. Reply Allan Dias 26/01/2017 at 13:12

    Então, antes de ensinar malícia para o Pedrinho porque não ensina a ela o que o amor NÂO é? Amor não é esse sentimento egoístico de posse pela não correspondência de sentimento. Se Pedrinho amasse mesmo Mariana não haveria embaraço quanto ao beijo.

    • Reply Rogério Braga 26/01/2017 at 20:14

      Olá, Allan! Te entendo muito bem. Ainda sim, tenho uma pergunta: quando Pedrinho deseja que a Mariana aprenda, que ela mude, esse sentimento é de quem? Do Pedrinho ou da Mariana?

      • Allan Dias 27/01/2017 at 09:12

        Perdão, escrevi errado acima. Quis dizer: porque não ensina a ELE o que o amor não é!

      • Rogério Braga 27/01/2017 at 20:02

        Agora fez mais sentido. (Rs)

        Se houvesse técnica suficiente na mente de Pedrinho, talvez ele se saísse melhor… Mas Pedrinho, ainda com seus 14 anos, não possuía maturidade suficiente… Pedrinho na ocasião se envolveu, quebrou a cara, mas se desenvolveu! Afinal só se desenvolve quem se envolve!

        Grande abraço, meu caro Allan!

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